FOTO EM FOCO: Cruzes Santas

Nas estradas do interior são comuns as chamadas “cruzes santas”. Elas demarcam o local onde pessoas conhecidas da comunidade morreram em acidentes, geralmente, atropeladas. Terminam fazendo parte da própria geografia dos lugarejos e o povo se acostuma com elas, que passam então, a nem ser vistas.
Um dom da fotografia é o de tornar especial, extraordinário, aquilo que é tido como banal, sem encanto, sem luz.

A série br459km79.3 procura valer-se desse dom tão miraculoso da arte de fotografar ao lançar sua atenção sobre disparatados e singelos objetos de devoção postos ao pé de uma cruz santa.  Para apresentá-la, redigi o texto abaixo.

Havia uma estrada vicinal serpenteando entre as montanhas. Uma estreita faixa de asfalto sem acostamento, com trânsito sossegado, fluindo gota a gota por sucessivos túneis verdes: a copa das árvores se enlaçava no alto e onde elas eram baixas ou inexistiam, grandes rasgos de céu vertiam luz inundando as margens e as encostas próximas.

Num domingo antigo, duas pobres senhoras devotas caminhavam rente à estrada retornando da missa quando foram atropeladas por um caminhão desgovernado dirigido por um bêbado. Morreram ambas e no local, duas cruzes de concreto brancas foram fincadas na terra arroxeada e crua, donde toda erva foi diligentemente capinada; paralelas, miravam o asfalto, dele distantes uns cinco metros. Uma laje de concreto, de uns cinco centímetros de espessura, com uma área de menos de um metro quadrado, foi deitada rente ao chão em frente às cruzes.

Então, sobre essa rústica mesa pedregosa foram as pessoas simples do lugar ajeitando santos de gesso, estatuazinhas pagãs, terços, colares, cordas, flores de plástico e flores de verdade colhidas nos jardins e nos campos, numa profusão tamanha que, em pouco tempo, aquele pequeno espaço se fartou. E um quadro absolutamente caótico, grotesco, bizarro se materializou incendiando a paisagem. Uma diminuta obra coletiva, sempre em mutação, de celebração da morte e, paradoxalmente, também, de celebração da vida. Exposta às intempéries, enraizou-se na paisagem como monumento vivo.


Para quem tiver curiosidade, existe um texto bem mais elaborado, escrito pelo poeta Henrique Marques Samyn – “da fotografia como celebração da vida”, que pode ser lido no link https://pt.slideshare.net/marciopannunzio/mrcio-pannunzio-br459km793-40044971

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